Entre o fato e a versão

Antonio Gavazzoni

Boatos existem desde que o mundo é mundo. Mas em era de comunicação digital, tanto o alcance quanto as consequências de uma história mal contada podem atingir patamares muito mais altos. Tanto é que a Oxford Dictionaries, departamento da universidade de Oxford responsável pela elaboração de dicionários, elegeu como palavra do ano em 2016 o termo “pós-verdade” – um adjetivo que denota circunstâncias em que os fatos têm menos influência na opinião pública do que os apelos à emoção e às crenças pessoais. Grosseiramente, poderíamos descrever a pós-verdade como o boato dos tempos atuais, geometricamente potencializado pelos veículos de comunicação instantânea.

O termo não foi criado em 2016, mas ganhou força este ano especialmente depois da divulgação de “notícias” como a de que o Papa Francisco apoiava a candidatura de Donald Trump ou de que Barack Obama é fundador do Estado Islâmico. Dependendo de quem divulga e da dimensão da multiplicação, uma informação, mesmo falsa, acaba ganhando efeitos de verdade para muitas pessoas. E o desmentido dificilmente tem o mesmo impacto.

Tragamos a situação para um caso bem recente. Logo que se soube que o comissário boliviano Edwin Tumiri havia sobrevivido quase ileso à queda do avião da Chapecoense, que deixou 71 vítimas fatais, circulou a informação de que ele só havia se salvado por ter assumido uma posição fetal, ensinada em treinamentos às tripulações de voos. A informação foi multiplicada por veículos respeitados de comunicação, que produziram até infográficos para ilustrar a situção. Assim que teve alta, Tumiri desmentiu a versão, contando que foi pego de surpresa e não teve tempo de se posicionar conforme os protocolos de segurança.

Essa situação específica ilustra uma pós-verdade que não trouxe danos mais sérios a ninguém – a não ser à credibilidade dos veículos de comunicação envolvidos. Mas alguns casos de mentiras largamente difundidas podem chegar ao extremo da violência. Em 2014, após ser acusada em redes sociais de que sequestrava crianças, uma mulher foi espancada até a morte na cidade de Guarujá (SP). Descobriu-se depois que ela era inocente.

Seja uma “mentirinha boba” ou uma calúnia grave, tudo o que se propaga sem checagem tem potencial para se transformar em uma pós-verdade, especialmente se a informação for atribuída a uma celebridade, uma autoridade ou a um veículo de comunicação. O problema se agrava com o fato de que muitas pessoas só se informam pelas redes sociais. Em alguns casos, os algorítimos utilizados fazem com que usuários recebam informações que corroboram seu ponto de vista, potencializando determinadas versões e os isolando de outras.

Embora sejam inegáveis os benefícios das redes para a comunicação, na maioria os usuários desses meios têm pouco compromisso com a checagem das informações. E é aí que está a grande oportunidade do jornalismo nos dias atuais. Quando não se deixam atropelar pela ânsia da informação instantânea, os veículos profissionais de comunicação ganham ampla vantagem com relação à credibilidade – ao tempo que têm sua responsabilidade potencialmente aumentada.

Assim como nos antigos boatos propagados boca a boca na vizinhança, cabe a cada um buscar separar o joio do trigo. E nunca é demais lembrar: se não tem certeza, não espalhe.

Por: Antonio Gavazzoni, Doutor em Direito Público
Secretário de Estado da Fazenda
contatogavazzoni@gmail.com

*Coluna publicada no jornal “O Celeiro”, Edição 1460 de 22 de Dezembro de 2016.

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