Entre o “querer” e o “dever”: uma análise sobre os limites das decisões políticas

No exercício da função administrativa, especialmente pelo Poder Executivo, decisões políticas fazem parte do jogo. É natural que os atos administrativos tenham um componente político. Governar é fazer escolhas, definir prioridades e alocar recursos conforme um projeto de governo.

Essas decisões são a expressão da democracia representativa, pois traduzem a vontade do eleito, referendada pelos eleitores nas urnas. São, portanto, em sua essência, legítimas.

No entanto, existe uma fronteira que não pode ser ultrapassada. A discricionariedade não deve ser uma carta em branco para que o agente público aja unicamente conforme sua vontade pessoal ou interesses que não encontram amparo no ordenamento. Existem, portanto, limites a serem seguidos, sob pena de invalidade do ato praticado.

A doutrina majoritária defende que, em regra, as decisões administrativas precisam ser motivadas e, uma vez motivadas, devem seguir no sentido dos motivos que determinaram a tomada de decisão.

A teoria dos motivos determinantes estabelece que a administração se vincula à motivação que tenha fundamentado o ato administrativo. Sobre o assunto, destaca-se a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

De acordo com essa teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação de “motivos de fato” falsos, inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, conforme já se disse, a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válidos se estes realmente ocorreram e o justificavam.

Os tribunais brasileiros são uníssonos quanto ao assunto. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, é firme ao estabelecer que:

  1. Os atos discricionários da Administração Pública estão sujeitos ao controle pelo Judiciário quanto à legalidade formal e substancial, cabendo observar que os motivos embasadores dos atos administrativos vinculam a Administração, conferindo-lhes legitimidade e validade.
  2. “Consoante a teoria dos motivos determinantes, o administrador vincula-se aos motivos elencados para a prática do ato administrativo. Nesse contexto, há vício de legalidade não apenas quando inexistentes ou inverídicos os motivos suscitados pela administração, mas também quando verificada a falta de congruência entre as razões explicitadas no ato e o resultado nele contido” (MS 15.290/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, julgado em 26.10.2011, DJe 14.11.2011).

Essa exigência, expressa na legislação infraconstitucional, encontra seus fundamentos em princípios constitucionais como a publicidade, a legalidade, a moralidade e a inafastabilidade da jurisdição. Representa um pilar da própria democracia e uma ferramenta indispensável de controle da Administração Pública.

A discricionariedade, portanto, não é a licença para o arbítrio. É, antes, a responsabilidade de escolher dentre as opções juridicamente aceitáveis, justificáveis e que atendam ao interesse público finalístico .

Ainda assim, não são poucos os casos em que a vontade se sobrepõe à motivação e à legalidade. Também não é incomum ver decisões taxadas de “estratégicas” que, na prática, atendem interesses específicos e momentâneos.

É nesse ponto que os mecanismos de controle – seja o controle social exercido pelo cidadão, seja o controle técnico dos Tribunais de Contas ou o controle de legalidade do Poder Judiciário — devem entrar em cena.

Diana Corrêa

O controle do mérito dos atos é um tema que ainda gera debates e certa resistência no Judiciário. No entanto, em casos de manifesta violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ele não apenas é possível como se torna imperativo para que o exercício legítimo do poder não se converta em abuso ou arbitrariedade.

A democracia não é só a escolha dos governantes. É também a forma pela qual eles exercem o poder. O “querer” do governante não deve se sobressair ao “dever” do administrador público.

Esse é o ponto de equilíbrio que sustenta um Estado verdadeiramente republicano.

Por: Diana Corrêa,
especialista em Direito Público, OAB-SC 62.010

*Artigo, publicado no Jornal O Celeiro, Edição 1888 de 24 de julho de 2025.

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