Vivemos na era da certificação. Selos, carimbos e denominações brotam nas embalagens como ervas daninhas, cada um prometendo uma virtude: orgânico, artesanal, sustentável, ancestral. A inflação de adjetivos resulta numa inevitável desvalorização da própria linguagem da qualidade. Um cético bem-alimentado, como eu, aprende a olhar para estes emblemas com uma sobrancelha arqueada. São, na esmagadora maioria das vezes, meros exercícios de marketing em busca de um nicho, uma tentativa de vestir com pompa uma realidade profundamente medíocre. Até que, de tempos em tempos, um deles nos compele a erguer os olhos.
É o caso da Denominação de Origem (DO) “Planalto Norte Catarinense”, a primeira do Brasil concedida a uma erva-mate. Um título pomposo, fruto de anos de pesquisa, laudos técnicos e articulação institucional. O tipo de esforço burocrático que, confesso, costuma provocar-me um bocejo contido. Contudo, a questão que importa ao final do dia, a única que verdadeiramente interessa, não está no papel timbrado do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, mas na cuia. Mas traduzir-se-á todo esse labor em algo que o palato possa, de facto, discernir? O selo protege uma essência ou apenas uma etiqueta? A resposta, para minha grata surpresa, está na sutileza de um amargor que se ausenta.
A Alquimia da Floresta
A palavra terroir, tão banalizada por enólogos amadores, encontra aqui sua expressão mais pura. A singularidade da erva-mate do Planalto Norte não nasce de uma receita secreta ou de uma técnica mirabolante, mas de uma condição imposta pela natureza e respeitada pelo homem: a sombra. A erva não é cultivada em fileiras monótonas sob um sol inclemente, como uma lavoura qualquer. Ela cresce em seu habitat primordial, no sub-bosque da Floresta com Araucária, sob o dossel protetor das árvores nativas.
Essa ausência de luz direta força a Ilex paraguariensis a uma adaptação engenhosa. Para capturar cada fóton disponível, a planta produz folhas com uma concentração muito maior de clorofila. O resultado visual é o primeiro indício de sua nobreza: um verde profundo, vibrante, quase luminoso, que se destaca de imediato da palidez de suas congêneres. A cor não é um artifício, é a assinatura da floresta.
Mas é na boca que a verdadeira revelação acontece. A agressividade tânica, aquele amargor rascante que tantos associam ao chimarrão, aqui se apresenta domado, polido. A ciência apenas corrobora o que o palato já havia sentenciado: a doçura inata da erva do Planalto Norte ofusca o seu amargor latente. Esta suavidade não é sinónimo de fraqueza; pelo contrário, é a marca de um equilíbrio complexo. A mesma condição de sombra que intensifica a cor verde também altera o perfil dos compostos fenólicos, arredondando as arestas do sabor. O que se prova não é apenas uma erva-mate, mas a própria penumbra da mata: fresca, complexa e surpreendentemente gentil. O teor mais elevado de cafeína, outro resultado direto deste cultivo, garante que a suavidade não comprometa o vigor. É uma bebida que desperta sem assustar, que conforta sem entorpecer.
A Economia da Sombra
Eis a beleza do sistema. Esta superioridade sensorial, agora protegida por lei, gera um ciclo virtuoso que transcende a gastronomia. Historicamente, a região prosperou com o “ouro verde”, mas sob a lógica extrativista. Hoje, a lógica inverteu-se. A Denominação de Origem transforma a Floresta com Araucária – um dos ecossistemas mais ameaçados do país – no principal ativo económico do produtor. A sombra, que em outros modelos agrícolas seria um empecilho, aqui é o fator que agrega valor. Manter a floresta em pé não é mais um ato de idealismo ecológico, mas uma decisão de negócio inteligente.
O selo no pacote, portanto, é muito mais do que a garantia de um chimarrão mais suave e de uma cor mais bonita. É um atestado, sussurrado a cada gole, de que a terra não foi envenenada por agrotóxicos; uma prova líquida de que aquele produto contribui para a conservação da biodiversidade. É o resultado de um modelo que sustenta milhares de famílias de pequenos agricultores e que responde por quase 80% da produção local, demonstrando que a sustentabilidade pode ocupar o palco principal, e não se contentar com os bastidores de um nicho.
No fim, a minha desconfiança inicial cedeu lugar a um respeito profundo. A Denominação de Origem da Erva-Mate do Planalto Norte Catarinense não é apenas mais um rótulo. É um manifesto. Um argumento convincente, embalado a vácuo, de que o melhor sabor emerge não da dominação da natureza, mas da cooperação inteligente com ela. E demonstra que, por vezes, a inovação mais radical a que podemos aspirar é simplesmente ter a sabedoria de proteger e valorizar aquilo que sempre esteve lá, crescendo pacientemente debaixo das árvores.
*’Coluna Sabores’, publicada no Jornal O Celeiro, Edição 1896 de 18 de setembro de 2025.